Ça n'est pas vrai!

30.5.06

Previsível

Nasci num 25 de dezembro e me batizaram de Natal. Estava predestinado ao previsível...
Tive uma infância normal e feliz. Percebi-me adolescente na primeira briga idiota, sem motivo, com meu irmão num 14 de julho.
Oito anos mais tarde, em 7 de setembro, saí da casa dos meus pais para dividir um apartamento com colegas. Havia juntado uma certa grana desde que começara, no ano anterior, a trabalhar em um escritório num dia 1o. de maio.
Tive minha primeira namorada de verdade ainda na casa de meus pais. Foi a mulher da minha vida. Começamos a namorar em 12 de junho e, quatro meses depois, em 12 de outubro, perdi a virgindade: deixei de ser moleque.
Vivi com ela por muito tempo. Casamos num mês de maio e o primeiro filho veio apressado no 1o. de janeiro seguinte.
Numa sexta-feira da Paixão ela me deixou. Três dias depois, estava de vida nova na casa de um bem-querer.
Quase enlouqueci! E, quinze dias depois, desesperado que estava, liguei suplicando que voltasse. Não reparei: era 1o. de abril.
No ano seguinte, depois do Carnaval, soube que estava grávida, quarta-feira de Cinzas.
Começou a quaresma e a minha depressão. Fui ficando melhor e, no domingo de Páscoa, era outro! Mas só até 21 de abril, quando a vi, barriga grande, bonita. Voltei para casa, coração estrangulado.Persisto assim, despedaçado. Já tentei juntar os cacos sem resultado. Hoje, agora, só uma coisa me vem à cabeça, mas são 23:55 e vou dormir. É 1o. de novembro e amanhã eu te falo. Ou não.

26.5.06

Possibilidades

Acordou às 6:30 e sabia do frio tão logo uma lufada de vento gelado invadiu seu quarto vindo do corredor em direção ao banheiro.
Tomou um café sem capricho e saiu desembalada pela porta da cozinha nem sabendo que o farol fecharia ao passar do ônibus dando-lhe tempo necessário para nele entrar antes que descesse a rua sem lhe ver.
Quieta e tranqüila, sozinha no último banco, não tinha noção de que a boa notícia a aguardava em um envelope branco em cima da mesa com a resposta favorável à mudança de cargo solicitada e desejada já há meio ano, na esperança também do acréscimo dos rendimentos. Ao se deparar com o futuro no seu presente ao abrir o envelope, sorriu com os olhos e também com os cantos finos da boca miúda. Sentiu um estranho calor nos olhos e o frio de uma lágrima a escorrer-lhe pelo olho direito e embaçar a lente dos óculos de míope.

No terceiro trim, a mão atendeu ao telefone enxugando as mãos ainda no pano de prato, mãos amareladas do cascar cenouras. Reconheceu a voz do outro lado, mas não sabia da alegria que ia lhe tomar por inteira, feliz que ficaria ao saber que a filha, a quem só o bem desejava e a quem, há mais de um ano, dedicava cuidados especiais para que o desânimo não a ocupasse por completo, esta mesma filha, daria-lhe uma boa notícia, destas que ela, mãe, sabia fazer jus a toda dedicação e empenho sempre demonstrados pela menina.
E a moça trabalhou feliz aquela manhã toda sem ter consciência de que, durante o almoço, seus verdadeiros amigos, felizes que também estavam por ela, “exigiriam” uma comemoração naquela noite.
Voltou ao trabalho já cheia de novas incumbências sem saber se daria conta de tanto fazer, embora tudo o que tivesse fosse vontade.
Foi para casa tomar um rápido banho ao fim do dia antes de rever os amigos. Não tinha idéia de que seus pais a esperavam com abraços, beijos e uma deliciosa sobremesa.
Saiu depois, feliz ainda que estava.

Com os amigos, conversaram, riram, comeram, beberam e ela foi ao banheiro sem saber que, no curto caminho, encontraria um cara que nunca vira. Ele também a comemorar o bom resultado na prova de qualificação de seu doutorado. Um moço bonito para o seu gosto. Também não sabia que ele conversaria coisas que ela gosta de falar.
Voltou à mesa dos amigos com um número de telefone no guardanapo. Outro desses na mão do rapaz que ligaria no dia seguinte, à hora do almoço, quando ela não estivesse esperando. Combinariam um cinema e a história pode acontecer.É aqui que eu fico (e você também). Se o fim é feliz ou triste, não nos cabe saber e eles vão decidir. A essência está aí e, desejando, levarão a história para o melhor caminho. De preferência para um lugar qualquer perdido neste espaço onde não haja a palavra fim.

22.5.06

Um ano e cinco meses

Tocou o telefone. Estava no colo dela e, de imediato, viu quem era. Sentiu a cabeça gelar, as mãos a suar e ficou sem saber, ao certo, o que faria, achando tudo aquilo uma sucessão de coisas estranhas.
Respirou e disse alô. Quis fazer voz formal, como se não soubesse de quem era o número que aparecia ali. É que havia dito a ele, em outra ocasião, já ter apagado seu número da agenda telefônica. Como se adiantasse... Havia decorado não só o número do telefone, mas dos sapatos, da pizzaria favorita; havia decorado o seu cheiro, a sua fala, seus olhares. Tentava esquecer, mas era mais forte do que qualquer esforço que dispensasse na tarefa. A verdade é que o amava; ainda. Podiam dizer o que fosse, mostrar-lhe por A mais B que ele nunca a havia considerado, que ele nunca havia ao menos reconhecido a mulher que ao lado dele estava. Nada disso adiantava; nem uma intervenção dos amigos, nem todo o carinho por eles demonstrado, nem todas as tentativas dela mesma em deletá-lo da memória. Amava-o, simplesmente.
A voz do outro lado da linha disse oi, sou eu. Era desnecessário dizer quem era. Ela já sabia quem era e, mesmo em não sabendo, conhecia cada pequena variação que aquela voz pudesse ter. Irracionalmente, animou-se com a saudação.
Conversaram banalidades por um bom tempo como se nunca tivessem deixado de se falar, como se a última ligação tivesse se passado há meia hora.
De repente, não tinham mais assunto a falar, embora tudo o que não faltasse fossem histórias para contar, coisas para conversar.
Antes de desligar ele disse, hoje tem um ano que a gente se reencontrou. E amanhã serão cinco meses que a gente não se vê.
Não sabe até agora porque ele disse isso: havia sofrido cada dia desde a ausência dele, havia contabilizado dores incontáveis. Respondeu que sabia e, na iminência do soluço, desligou o telefone após o tchau e o beijo.
Ainda com o telefone nas mãos, apagou a luz do quarto e chorou para ninguém, e nem mesmo por ele.
Chorou um choro abafado e silencioso para si mesma. Um choro de quem se surpreende com a possibilidade de ainda chorar.

19.5.06

A quem possa interessar.

Esta é uma carta de amor.
Não será enviada a alguém em específico, mas, você, que agora a lê, terá certeza de estar à frente de uma história de amor. Não totalmente alegre, mas verdadeiramente feliz e sofrida, assim como o próprio amor.

Escrevi essas linhas na intenção de que, podendo e achando relevante, possa extrair algum exemplo disso aqui.
Escrevo para tentar dar vazão ao que carrego já há tanto tempo.
Escrevo na tentativa de entender a mim mesmo e um pequeno pedaço da minha história que me traz ainda tantas confusões.

Andei acabrunhado a vida toda. Conheci mulheres, me dei bem com umas, curti bons momentos, mas nunca senti o que me falaram ser a paixão.
Um dia, no sem querer da vida, conheci uma morena: nem bonita, nem feia. Gostei da conversa, do seu sorriso triste quase imperceptível no canto da boca. Não se mostrou interessada e isso despertou o meu interesse.
Pelejei, pelejei e consegui enfim.
Ela foi, devagar, mostrando-se minha a cada dia mais. Falava em casar, ter filhos, e eu, que nem pensava em tais coisas, fui me fazendo das vontades dela.
Aprendi a guardar dinheiro para coisas que ela achava necessárias. Comprei carro, mobiliei a casa, até louça nova comprei!
E fomos nos fazendo mais felizes. Falávamos um ao outro nossa felicidade, mas ela também estava nos olhos. E com esses olhos alegres, um dia ela chegou, no calor. Eu de bermudas. Sentou-se ao meu lado, passou as mãos pela minha perna, perguntou pela enésima vez sobre o dia em que perdi o jogo e ganhei os cinco pontos no tornozelo. Perguntou se havia doído. Eu nem mais lembrava, disse, mas era ver a cicatriz e sentir a indignação pela entrada feia das travas da chuteira do adversário na canela e a dor do corte aberto.
Fui buscar um pouco d’água para ela que suava. Não a encontrei na sala. Nem na varanda.
Nunca mais voltou.
Não levou nada: nem roupa, nem jóia, nem o jogo de jantar em porcelana que era o seu gosto. Só o meu sossego e o coração.

12.5.06

Janela

Costumava ficar na janela de casa observando a rua, as pessoas, as janelas dos prédios ao lado.
Costumava passar horas assim, vivendo na vida dos outros.
Acordava antes das sete com os passos em salto alto no apartamento acima. Ia logo para o banheiro e, pela roupa de quem varria, na casa em frente, as folhas do quintal, imaginava o clima do dia.
Descobriu que, acompanhando o sol no começo do dia, entrando pela janela de seu quarto, os cabelos recém lavados, esquentava-se mais rápido. Depois, janela entreaberta, o vento entrava lentamente e o cheiro do sono pouco a pouco ia embora e caixas e sacolas entravam pela porta lateral do restaurante a quilo.
Por volta das onze da manhã, hora em que o faxineiro limpava seu corredor, os cabelos já secos, batia papo enquanto a limpeza era feita e a loja de pneus avistada do hall começava a ter mais movimento no entra e sai de carros e gente.
Almoçava na hora em que o caminhão de lixo apontava lá embaixo na esquina. Mas era só o tempo de comer e voltar para ver a rua já limpa, sem os sacos pretos deixados à noite, sem cuidado nenhum, pelas calçadas.
Na sexta-feira, quando a fila da lotérica inchava pela notícia da acumulada, sabia que a novela preferida da vizinha gorda do prédio antigo estava para começar: mudava de cômodo e, da cozinha, acompanhava o capítulo.
Devagar, sem ter nem percebido, seus hábitos eram um amontoado de hábitos de outros e, numa imprevisibilidade qualquer, o dia se tornava, para ele, uma coisa estranha, talvez até estressante.
Por isso mesmo, nem olhava para o sexto andar no segundo prédio à direita da janela do escritório. Morava lá gente sem mania. Destes que acordam às sete ou às quatro e por vezes nem dormem; destes que trabalham lá mesmo, quando dá vontade, a depender do dia; que só trocam o pijama se a geladeira está vazia. Teve um dia em que a moça mais nova dali, em um gesto rápido, ofereceu-lhe da caneca em que bebia. Ligeiro, encostou-se na estante de livros, encolhido no pequeno pedaço de parede que sobrava até a janela. No dia seguinte, à mesma hora, esgueirou-se novamente naquele espacinho. Olhou e olhou mais uma vez, mas a moça não estava.
E sua preocupação, nesses dias, recaiu-se sobre a loja de móveis recém-aberta ao lado do banco. Diferente das outras lojas que via, naquelas entravam casais ou pessoas sozinhas, mas jovens, em sua maioria. Gente bem vestida. Curioso, foi até o escritório buscar os óculos esquecidos sobre um livro para ver se era sofá ou divã que ocupava, em verde-oliva, a vitrine da direita. Num movimento para voltar à sala, de soslaio, a moça estava lá. Cabelos soltos, desarranjados, de costas para ele. Deixou-se ficar acompanhando-a no bater do liquidificador. E quando ela se virou, nem teve tempo de disfarçar que olhava para outro canto. Em fogo, desembestado rumou para a sala. Ficou parado, em pé, no corredor, por uns instantes. O coração na iminência de deixar a boca, as mãos estranhamente geladas. Voltou para o escritório. Devagar, resvalou a janela. Ela continuava.
Passou a procura-la, todos os dias. Sentia-se perdido. Não havia mais horas, os outros cômodos deixaram de recebe-lo metodicamente. Estendeu um colchonete no chão do escritório e uma cadeira onde ficava a estante. Olhava de pouco a pouco. Todos os dias a via e, tão logo ela o enxergasse, se escondia.
Ontem ela apareceu vestida de amarelo a realçar a cor morena dos braços. Os cabelos mais desarranjados que nunca, ao vento. Sandália nos pés. Ela nada viu e atravessou o portão para a rua. Ele fechou a janela à cortina e saiu para a vida.