Raiva
Acordou mais cedo que o normal.
Um barulho incessante debaixo de sua janela irritou-o e deu-lhe a certeza de que a alegria é animalesca; mostra-se em expressões guturais, singularmente enervantes.
Tanto barulho e tanta alegria, tanta confusão que seu objetivo de vida naquele momento era eliminar a fonte do que via como um êxtase exagerado e despropositado, um êxtase desvairado e irracional.
Correu à janela e gritou meia dúzia de despautérios e palavrões. Palavras capazes de corar qualquer um, mas, mesmo assim, palavras insuficientes para equilibrar seu desgosto frente a tal tormento.
Rapidamente deu-se conta de que não conseguiria voltar à cama, pois a raiva aumentaria a cada segundo que tentasse dormir de novo e o sono, perturbado com aquela agitação estúpida, não viesse: estava realmente agitado com aquilo. O coração batia forte: podia senti-lo como se estivesse dentro do cérebro; ouvia-o nitidamente a bombear com batidas cada vez menos espaçadas, a fronte queimando num acréscimo sem precedentes. Suava pensando na noite de sono que haviam lhe roubado.
Levantou-se e mudou a roupa. A esta altura o sono não viria mais e resolver descer e ver se restava alguém na rua.
Na portaria, o vigia da madrugada deu-lhe, surpreso, “um bom dia, seu Irani”. Bom rapaz.
Ficou sabendo ali mesmo que o barulho fora uma turma voltando da balada, animada e conversando enquanto o semáforo mostrava-lhes a luz ainda vermelha. Passaram e sumiram tão logo se fez o verde.
Não quis voltar pra casa e decidiu andar até a padaria.
Gilson, o garçom de sempre, trouxe o café e comentou o futebol.
Na verdade, nosso personagem principal nada sabe de futebol, times e jogadores. Nada sabe de esportes ou práticas que, a seu ver, envolvam multidões doentes gritando, torcendo, chorando, comemorando juntas.
Com o movimento fraco, Gilson pára uns instantes em pé em frente a sua mesa e ele bem sabe que é só concordar um pouco, perguntar o placar, reclamar do juiz que fica a impressão de que se é expert no assunto.
Ainda jogavam conversa fora quando o dia clareou e a padaria começou a se encher. O dono, do balcão, gritou ao Gilson que ele não estava em casa.
Irani observou o colega de papo sair atrapalhado e envergonhado, faces vermelhas e cabisbaixo, sem encarar os fregueses, enfiar-se atrás do balcão e vestir um sorriso para atender ao próximo.
Na saída, não levantou os olhos para não ter que cruzar olhares com o dono da padaria e sua testa sempre suada.
Entregou a nota escondida no punho cerrado ao bonachão e agradeceu que o rosto dele estivesse protegido atrás dos maços de cigarro do caixa. Mentalmente viu-se quebrando o vidro e tirando este ser que lhe causava asco de lá de dentro, os cigarros se espalhando pelo chão da padaria. Viu-se esmurrando com a mão direita as gordas bochechas. Sentiu os nós dos dedos doerem ao encontrar o nariz já ensangüentado.
Pegou o troco e saiu da padaria ainda sem conseguir levantar os olhos, mas os sentia arderem, vermelhos que estavam.
Cor de sangue, cor de sua raiva.
Um barulho incessante debaixo de sua janela irritou-o e deu-lhe a certeza de que a alegria é animalesca; mostra-se em expressões guturais, singularmente enervantes.
Tanto barulho e tanta alegria, tanta confusão que seu objetivo de vida naquele momento era eliminar a fonte do que via como um êxtase exagerado e despropositado, um êxtase desvairado e irracional.
Correu à janela e gritou meia dúzia de despautérios e palavrões. Palavras capazes de corar qualquer um, mas, mesmo assim, palavras insuficientes para equilibrar seu desgosto frente a tal tormento.
Rapidamente deu-se conta de que não conseguiria voltar à cama, pois a raiva aumentaria a cada segundo que tentasse dormir de novo e o sono, perturbado com aquela agitação estúpida, não viesse: estava realmente agitado com aquilo. O coração batia forte: podia senti-lo como se estivesse dentro do cérebro; ouvia-o nitidamente a bombear com batidas cada vez menos espaçadas, a fronte queimando num acréscimo sem precedentes. Suava pensando na noite de sono que haviam lhe roubado.
Levantou-se e mudou a roupa. A esta altura o sono não viria mais e resolver descer e ver se restava alguém na rua.
Na portaria, o vigia da madrugada deu-lhe, surpreso, “um bom dia, seu Irani”. Bom rapaz.
Ficou sabendo ali mesmo que o barulho fora uma turma voltando da balada, animada e conversando enquanto o semáforo mostrava-lhes a luz ainda vermelha. Passaram e sumiram tão logo se fez o verde.
Não quis voltar pra casa e decidiu andar até a padaria.
Gilson, o garçom de sempre, trouxe o café e comentou o futebol.
Na verdade, nosso personagem principal nada sabe de futebol, times e jogadores. Nada sabe de esportes ou práticas que, a seu ver, envolvam multidões doentes gritando, torcendo, chorando, comemorando juntas.
Com o movimento fraco, Gilson pára uns instantes em pé em frente a sua mesa e ele bem sabe que é só concordar um pouco, perguntar o placar, reclamar do juiz que fica a impressão de que se é expert no assunto.
Ainda jogavam conversa fora quando o dia clareou e a padaria começou a se encher. O dono, do balcão, gritou ao Gilson que ele não estava em casa.
Irani observou o colega de papo sair atrapalhado e envergonhado, faces vermelhas e cabisbaixo, sem encarar os fregueses, enfiar-se atrás do balcão e vestir um sorriso para atender ao próximo.
Na saída, não levantou os olhos para não ter que cruzar olhares com o dono da padaria e sua testa sempre suada.
Entregou a nota escondida no punho cerrado ao bonachão e agradeceu que o rosto dele estivesse protegido atrás dos maços de cigarro do caixa. Mentalmente viu-se quebrando o vidro e tirando este ser que lhe causava asco de lá de dentro, os cigarros se espalhando pelo chão da padaria. Viu-se esmurrando com a mão direita as gordas bochechas. Sentiu os nós dos dedos doerem ao encontrar o nariz já ensangüentado.
Pegou o troco e saiu da padaria ainda sem conseguir levantar os olhos, mas os sentia arderem, vermelhos que estavam.
Cor de sangue, cor de sua raiva.
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