Ça n'est pas vrai!

1.8.06

Reta

Acordava todos os dias antes das seis.
Quando chegava à cozinha para preparar o café dos pais velhinhos, já havia rezado um terço à Nossa Senhora de Fátima pedindo que a abençoasse e a toda sua família.
Os pais acordavam, o café estava quente na garrafa, pães frescos sobre a mesa.

Desde que, aos vinte anos, os pais perceberam que não casaria, passou a se dedicar exclusivamente aos cuidados dos dois.
Namorados e namoradas dos irmãos foram chegando à casa, depois sobrinhos, mais crianças e, de repente, já era tia avó, mas continuava a cuidar da organização e da limpeza da casa, do almoço e da janta, das compras no supermercado, açougue e feira, das contas a serem pagas no banco.

Não perceberia que os anos estavam passando se, de muito tempo para cá, não precisasse retocar a raiz branca dos cabelos com uma rapidez maior, ou se não precisasse, também ela, ser consultada pelo cardiologista dos pais e tomar todos aqueles remédios para pressão alta, labirintite e as articulações que teimavam em doer a cada pequena variação do tempo.

Não tinha muitas amigas, mas, a quem comentasse que a vida dela não era fácil, que deveria pedir às irmãs alguma ajuda com a casa e os pais, respondia que não fazia por obrigação, fazia por gosto; e costume.

Acostumou-se a outras coisas também.
Quando pai e mãe se aposentaram, aprendeu a economizar. Teve um refresco quando ela mesma conseguiu se aposentar, mas, em tempos difíceis como agora, precisou fazer o dinheiro chegar ao fim do mês. Retomou então, já com quase 60, o hábito de costurar, e cosia calças, saias, camisas e pijamas, para ela e os pais.
Não gostava da atividade, sentia que os olhos cansados necessitavam de grande esforço para deixar o cerzido reto, mas acabou por se acostumar com isso também, e com o chop-chop da agulha no tecido. Aproveitava a hora da missa no rádio para se sentar à máquina e notou que, assim, o trabalho durava menos.

Quase não saía de casa para outras atividades que não as da casa, banco, médico e idas à igreja. Raramente se ausentava mais que hora e meia nestas saídas necessárias. Talvez por medo de deixar os pais sozinhos, talvez por medo de si mesma e do perigo que a rua representava...

Era quase certo que, na volta da visita à agência bancária para receber a pensão, ela, de roupas sóbrias e discretas, sentava-se num café. Pedia um chá e um doce, seu deleite no acompanhar o vai e vem apressado das pessoas no centro da cidade.
À medida em que bebericava do chá, o calor a invadia. Não só o corpo, mas também a alma.
Sentia como se não fosse mais ela, como se levantasse alguém dentro de si.
Cambaleante, ocupava seus olhos, a mente, as mãos e um botão da camisa era aberto; depois outro.
No calor, os músculos se contraíam e, talvez, vissem um sorriso aparecer. E os olhos semi-cerrados acompanhavam o esforço de, lenta e delicadamente, passar a ponta da língua pelos lábios cuidadosamente abertos, as mãos a roçar o pescoço e ajeitar os cabelos.
Acordava do sono acordada quando a torre da igreja anunciava a hora completa.
Intranqüila e nervosa, recompunha-se antes de sair rumo ao ônibus. Chegava em casa já escuro, mas ainda a tempo de acompanhar a missa pela TV. Sentava para fazer a barra de uma saia ou calça, pregar um botão.

Invariavelmente, nestes dias, dispensava o dedal picando a ponta do indicador.