Janela
Costumava ficar na janela de casa observando a rua, as pessoas, as janelas dos prédios ao lado.
Costumava passar horas assim, vivendo na vida dos outros.
Acordava antes das sete com os passos em salto alto no apartamento acima. Ia logo para o banheiro e, pela roupa de quem varria, na casa em frente, as folhas do quintal, imaginava o clima do dia.
Descobriu que, acompanhando o sol no começo do dia, entrando pela janela de seu quarto, os cabelos recém lavados, esquentava-se mais rápido. Depois, janela entreaberta, o vento entrava lentamente e o cheiro do sono pouco a pouco ia embora e caixas e sacolas entravam pela porta lateral do restaurante a quilo.
Por volta das onze da manhã, hora em que o faxineiro limpava seu corredor, os cabelos já secos, batia papo enquanto a limpeza era feita e a loja de pneus avistada do hall começava a ter mais movimento no entra e sai de carros e gente.
Almoçava na hora em que o caminhão de lixo apontava lá embaixo na esquina. Mas era só o tempo de comer e voltar para ver a rua já limpa, sem os sacos pretos deixados à noite, sem cuidado nenhum, pelas calçadas.
Na sexta-feira, quando a fila da lotérica inchava pela notícia da acumulada, sabia que a novela preferida da vizinha gorda do prédio antigo estava para começar: mudava de cômodo e, da cozinha, acompanhava o capítulo.
Devagar, sem ter nem percebido, seus hábitos eram um amontoado de hábitos de outros e, numa imprevisibilidade qualquer, o dia se tornava, para ele, uma coisa estranha, talvez até estressante.
Por isso mesmo, nem olhava para o sexto andar no segundo prédio à direita da janela do escritório. Morava lá gente sem mania. Destes que acordam às sete ou às quatro e por vezes nem dormem; destes que trabalham lá mesmo, quando dá vontade, a depender do dia; que só trocam o pijama se a geladeira está vazia. Teve um dia em que a moça mais nova dali, em um gesto rápido, ofereceu-lhe da caneca em que bebia. Ligeiro, encostou-se na estante de livros, encolhido no pequeno pedaço de parede que sobrava até a janela. No dia seguinte, à mesma hora, esgueirou-se novamente naquele espacinho. Olhou e olhou mais uma vez, mas a moça não estava.
E sua preocupação, nesses dias, recaiu-se sobre a loja de móveis recém-aberta ao lado do banco. Diferente das outras lojas que via, naquelas entravam casais ou pessoas sozinhas, mas jovens, em sua maioria. Gente bem vestida. Curioso, foi até o escritório buscar os óculos esquecidos sobre um livro para ver se era sofá ou divã que ocupava, em verde-oliva, a vitrine da direita. Num movimento para voltar à sala, de soslaio, a moça estava lá. Cabelos soltos, desarranjados, de costas para ele. Deixou-se ficar acompanhando-a no bater do liquidificador. E quando ela se virou, nem teve tempo de disfarçar que olhava para outro canto. Em fogo, desembestado rumou para a sala. Ficou parado, em pé, no corredor, por uns instantes. O coração na iminência de deixar a boca, as mãos estranhamente geladas. Voltou para o escritório. Devagar, resvalou a janela. Ela continuava.
Passou a procura-la, todos os dias. Sentia-se perdido. Não havia mais horas, os outros cômodos deixaram de recebe-lo metodicamente. Estendeu um colchonete no chão do escritório e uma cadeira onde ficava a estante. Olhava de pouco a pouco. Todos os dias a via e, tão logo ela o enxergasse, se escondia.
Ontem ela apareceu vestida de amarelo a realçar a cor morena dos braços. Os cabelos mais desarranjados que nunca, ao vento. Sandália nos pés. Ela nada viu e atravessou o portão para a rua. Ele fechou a janela à cortina e saiu para a vida.
Costumava passar horas assim, vivendo na vida dos outros.
Acordava antes das sete com os passos em salto alto no apartamento acima. Ia logo para o banheiro e, pela roupa de quem varria, na casa em frente, as folhas do quintal, imaginava o clima do dia.
Descobriu que, acompanhando o sol no começo do dia, entrando pela janela de seu quarto, os cabelos recém lavados, esquentava-se mais rápido. Depois, janela entreaberta, o vento entrava lentamente e o cheiro do sono pouco a pouco ia embora e caixas e sacolas entravam pela porta lateral do restaurante a quilo.
Por volta das onze da manhã, hora em que o faxineiro limpava seu corredor, os cabelos já secos, batia papo enquanto a limpeza era feita e a loja de pneus avistada do hall começava a ter mais movimento no entra e sai de carros e gente.
Almoçava na hora em que o caminhão de lixo apontava lá embaixo na esquina. Mas era só o tempo de comer e voltar para ver a rua já limpa, sem os sacos pretos deixados à noite, sem cuidado nenhum, pelas calçadas.
Na sexta-feira, quando a fila da lotérica inchava pela notícia da acumulada, sabia que a novela preferida da vizinha gorda do prédio antigo estava para começar: mudava de cômodo e, da cozinha, acompanhava o capítulo.
Devagar, sem ter nem percebido, seus hábitos eram um amontoado de hábitos de outros e, numa imprevisibilidade qualquer, o dia se tornava, para ele, uma coisa estranha, talvez até estressante.
Por isso mesmo, nem olhava para o sexto andar no segundo prédio à direita da janela do escritório. Morava lá gente sem mania. Destes que acordam às sete ou às quatro e por vezes nem dormem; destes que trabalham lá mesmo, quando dá vontade, a depender do dia; que só trocam o pijama se a geladeira está vazia. Teve um dia em que a moça mais nova dali, em um gesto rápido, ofereceu-lhe da caneca em que bebia. Ligeiro, encostou-se na estante de livros, encolhido no pequeno pedaço de parede que sobrava até a janela. No dia seguinte, à mesma hora, esgueirou-se novamente naquele espacinho. Olhou e olhou mais uma vez, mas a moça não estava.
E sua preocupação, nesses dias, recaiu-se sobre a loja de móveis recém-aberta ao lado do banco. Diferente das outras lojas que via, naquelas entravam casais ou pessoas sozinhas, mas jovens, em sua maioria. Gente bem vestida. Curioso, foi até o escritório buscar os óculos esquecidos sobre um livro para ver se era sofá ou divã que ocupava, em verde-oliva, a vitrine da direita. Num movimento para voltar à sala, de soslaio, a moça estava lá. Cabelos soltos, desarranjados, de costas para ele. Deixou-se ficar acompanhando-a no bater do liquidificador. E quando ela se virou, nem teve tempo de disfarçar que olhava para outro canto. Em fogo, desembestado rumou para a sala. Ficou parado, em pé, no corredor, por uns instantes. O coração na iminência de deixar a boca, as mãos estranhamente geladas. Voltou para o escritório. Devagar, resvalou a janela. Ela continuava.
Passou a procura-la, todos os dias. Sentia-se perdido. Não havia mais horas, os outros cômodos deixaram de recebe-lo metodicamente. Estendeu um colchonete no chão do escritório e uma cadeira onde ficava a estante. Olhava de pouco a pouco. Todos os dias a via e, tão logo ela o enxergasse, se escondia.
Ontem ela apareceu vestida de amarelo a realçar a cor morena dos braços. Os cabelos mais desarranjados que nunca, ao vento. Sandália nos pés. Ela nada viu e atravessou o portão para a rua. Ele fechou a janela à cortina e saiu para a vida.
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