Ça n'est pas vrai!

23.11.10

Imenso vazio

Imensidão. O vazio.

Ensurdece, o silêncio.

E tudo ali, trancado. Mesmo houvesse balbúrdia, não há quem escute.

Retorna o silêncio.

E a mente, surda, nem mais o percebe.

1.7.10

Desnecessário

Sim, eu sou fraca, frágil e eu me machuco com uma facilidade imensa.

Não posso negar que ainda não doa, porque dói sim. Bastante. Mas se há algo que aprendi com o fato de ser fraca, é que os outros são mais fortes, se recompõem mais facilmente e, assim sendo, a minha dor aos outros incomoda.

Aprendi então a me metamorfosear e sigo o padrão seguido pelos demais. Se a dor é pequena, demonstro-a como se assim a minha também fosse; se as falas são lacônicas, fecho a boca e nada digo; se fogem de mim, me escondo dentro de mim mesma.

Eu não queria passar por isso mais uma vez; eu não precisava...

Mas sua indignação frente ao meu comportamento de não querer me machucar foram por mim compreendidos e neles você encontrou o meu apoio, o meu peito literalmente aberto e disposto a confortá-lo. E eu te pedi, não poucas vezes!, para não insistir.

Eu sabia que isso iria acontecer; eu sabia que eu iria chorar muito; ia me ver de novo sozinha.

Eu não precisava disso!

Depois de tudo, tornei-me uma estranha, do outro lado da rua.

De cor

É completamente dizível. Em palavras escritas ou faladas.

É um conceito já estruturado: sei-o de cor. Assim mesmo; redundante.

E é um pleonasmo dentro também de mim; um excesso que só quer transbordar.

Mas há que ficar preso.

Preso não por ser inefável: preso pela impossibilidade de que queira ouvir o interlocutor pretendido.

5.6.09

A ida - parte 1

“Eu não entendo direito o porquê, mas já tem uns dias que toda vez que meu pai chega em casa depois da roça minha mãe e ele conversam até bem depois que a gente tudo já foi pra cama. Falam com voz baixa e às vezes minha mãe chora. Chora baixinho também.  E enxuga a cara com o pano de prato. Acho que ela não quer que ninguém perceba. Mas eu vejo! Lá da minha cama, eu vejo que o rosto dela tá diferente, o olho vermelho. Não tem como não perceber. É que a Joana e o Miguel são pequenos, mas eu já tenho 10 anos e vejo essas coisas.”

E a mãe dela chorava, sim, todos os dias, quando o marido chegava da roça e contava que o milho não pendoava por falta de chuva na época certa, que o arroz do paiol tinha carunchado, que as vacas estavam cada vez mais magras sem grama nova.

Até que a mãe contou: “Filha, nós vamos embora. Seu pai falou com o Bastião. Tem lugar bom pra trabalhar lá em Minas. Vamos pra lá. É longe.”

“Não deu nem um dia inteirinho e as trouxas tavam feitas. Meu pai pegou uns sacos lá na mercearia e a mãe colocou as panelas em um e nossas roupas no outro. As roupas boa, falou a mãe, vão no corpo mesmo.”

E foram. Com roupa de missa. Entraram no ônibus e o cheiro de viagem inebriou a imaginação daquelas crianças que nunca tinham ido além das cercas da fazenda vizinha. Com um doce na boca, a alegria deles era imensa. Pai e mãe não iam tão animados. Susto, talvez, fosse a expressão no rosto deles. Era tudo novo, era um mundo novo, era uma vida nova. E o ônibus nem tinha deixado a rodoviária.

15.5.09

No surprises

Escolheu Radiohead como trilha sonora de sua vida. Dentre todas, “Black star”.

Estava certo de que era a sua música; a que mostrava a todos o que era a sua vida: não só como ele mesmo percebia sua vida, mas como ela era; de fato.

Vez por outra, esquecia a tristeza; e um sorriso tímido aparecia torto no canto dos lábios, desacostumado que estava de se fazer ver.

Todos os dias eram a repetição do anterior: despertador, café, água no rosto, dentes escovados e rua. Não via razão em seu trabalho, embora continuasse a fazê-lo dia após outro.

Na grande companhia de desenvolvimento de softwares, sabia-se mais um entre tantos; mais um entre as dezenas de rapazes na casa dos vinte, com cabelos desgrenhados e casaco de moletom, a subir até o sexto andar, se sentar em uma pequena mesa e lá passar o dia na mesa acessando sites de clientes e alterando o possível para torná-los mais seguros.

Naquela noite, ao descer as escadas até a calçada, avistou alguns dos colegas de trabalho em uma mesa do bar em frente. Ao ouvir seu nome, polidamente, acenou com a cabeça. Mas aquele amigo que sentava sempre duas mesas após a sua e levantava com certa frequência para a máquina de café ao seu lado gritou seu nome e insistiu para que ele chegasse mais próximo.

Sem pensar, cruzou a rua e, quando percebeu, já estava no terceiro chope.

O sabor amargo e o frescor em contraste com o calor que sentira o dia todo mesmo que o ar condicionado estivesse ligado fizeram-no deixar-se esquecer das horas.

Conversaram, riram e, quando nem pensavam em ir embora, o rapaz que os atendia trouxe a conta e o pedido que a pagassem, pois “já passa da hora, tenho que fechar”.

Já eram mesmo só os dois e a fala não saia mais de modo conexo de suas bocas.

Pegaram o metrô juntos. Tanta cerveja tinha deixado seu amigo com sono. Sem poder segurar as pálpebras, o colega recostou a cabeça e, no balanço do vagão, aos poucos, ela tocou seu ombro. Sentiu o cheiro de couro cabeludo suado. E também do cigarro que fumaram minutos atrás.

Quando o trem chegou à estação final, percebeu que já passara a sua há tempos.

O amigo acordou com o aviso sonoro de fim de linha e desceu ainda zonzo, sem se despedir direito. Tomou as escadas rolantes e seu corpo, na altura do teto, foi-se apagando da cabeça aos pés, lentamente.

Na volta do trem, desceu e caminhou até em casa.

Um sorriso tranquilo, timidamente feliz, acompanhava o boa noite ao porteiro.

 

15.12.07

Vai e vem

Já chorei muito. Chorei dias e noites, por gente que me fazia falta, por gente que me fazia sofrer.
Um choro de vai e vem; choro de bem-querer; choro sofrido; choro amargo.

Decidi de mim para mim que o sofrimento tinha hora para acabar e que a hora era aquela.
Resolvi não mais chorar.

De um esforço danado, fiz das tripas coração; mordi os lábios, ressequei os olhos até arderem; fiz de conta que não doía mais. Reinventei-me em uma história que nem mais minha era.

A decisão tornou-se frágil quando novos olhares se cruzaram, nova boca me tocou, seu corpo no meu, nos conhecendo, e as pernas voltando a bambear.

Fiquei com vontade de você...

Juro que eu não queria estar assim, tão insegura, tão propensa ao que só é indecisão, mas estou!
Desculpa se te atormento com meus despautérios, minha loucura, minha vontade. Desculpa se minhas demonstrações de bem querer te chateiam. Desculpa confiar a você todo o meu desejo de estar bem.
Mas é só assim, no desejo insano de estar bem, sem saber se sim ou não; na vontade de tanto mais ver sem conhecer o amanhã, é que consigo pensar em te querer.

10.7.07

Raiva

Acordou mais cedo que o normal.
Um barulho incessante debaixo de sua janela irritou-o e deu-lhe a certeza de que a alegria é animalesca; mostra-se em expressões guturais, singularmente enervantes.
Tanto barulho e tanta alegria, tanta confusão que seu objetivo de vida naquele momento era eliminar a fonte do que via como um êxtase exagerado e despropositado, um êxtase desvairado e irracional.
Correu à janela e gritou meia dúzia de despautérios e palavrões. Palavras capazes de corar qualquer um, mas, mesmo assim, palavras insuficientes para equilibrar seu desgosto frente a tal tormento.

Rapidamente deu-se conta de que não conseguiria voltar à cama, pois a raiva aumentaria a cada segundo que tentasse dormir de novo e o sono, perturbado com aquela agitação estúpida, não viesse: estava realmente agitado com aquilo. O coração batia forte: podia senti-lo como se estivesse dentro do cérebro; ouvia-o nitidamente a bombear com batidas cada vez menos espaçadas, a fronte queimando num acréscimo sem precedentes. Suava pensando na noite de sono que haviam lhe roubado.

Levantou-se e mudou a roupa. A esta altura o sono não viria mais e resolver descer e ver se restava alguém na rua.
Na portaria, o vigia da madrugada deu-lhe, surpreso, “um bom dia, seu Irani”. Bom rapaz.
Ficou sabendo ali mesmo que o barulho fora uma turma voltando da balada, animada e conversando enquanto o semáforo mostrava-lhes a luz ainda vermelha. Passaram e sumiram tão logo se fez o verde.

Não quis voltar pra casa e decidiu andar até a padaria.
Gilson, o garçom de sempre, trouxe o café e comentou o futebol.
Na verdade, nosso personagem principal nada sabe de futebol, times e jogadores. Nada sabe de esportes ou práticas que, a seu ver, envolvam multidões doentes gritando, torcendo, chorando, comemorando juntas.

Com o movimento fraco, Gilson pára uns instantes em pé em frente a sua mesa e ele bem sabe que é só concordar um pouco, perguntar o placar, reclamar do juiz que fica a impressão de que se é expert no assunto.

Ainda jogavam conversa fora quando o dia clareou e a padaria começou a se encher. O dono, do balcão, gritou ao Gilson que ele não estava em casa.
Irani observou o colega de papo sair atrapalhado e envergonhado, faces vermelhas e cabisbaixo, sem encarar os fregueses, enfiar-se atrás do balcão e vestir um sorriso para atender ao próximo.

Na saída, não levantou os olhos para não ter que cruzar olhares com o dono da padaria e sua testa sempre suada.
Entregou a nota escondida no punho cerrado ao bonachão e agradeceu que o rosto dele estivesse protegido atrás dos maços de cigarro do caixa. Mentalmente viu-se quebrando o vidro e tirando este ser que lhe causava asco de lá de dentro, os cigarros se espalhando pelo chão da padaria. Viu-se esmurrando com a mão direita as gordas bochechas. Sentiu os nós dos dedos doerem ao encontrar o nariz já ensangüentado.
Pegou o troco e saiu da padaria ainda sem conseguir levantar os olhos, mas os sentia arderem, vermelhos que estavam.
Cor de sangue, cor de sua raiva.

7.7.07

Preguiiiiiça

O despertador berrou às 9:30. Por um instante não entendi o porquê daquilo, mas logo me lembrei que eu mesma tinha-o ativado na noite anterior.
Isso tem se tornado um hábito: todas as noites, antes de dormir, programo o despertador e penso positivamente que na manhã seguinte vou encarar o trabalho com vontade.
Toca o despertador, levanto, vou ao banheiro, e, ainda descabelada, tomo meu café sentada no sofá, ligo a televisão. “Mais dez minutos”, prometo a mim mesma, “e me troco pra ir trabalhar”. Mas aí começa a passar um episódio que ainda não vi, depois vêm as notícias. Decido ficar em casa, “home office é tudo”. Ligo o computador sentada no sofá. A faxineira pede pra limpar a sala, peço para ela trazer um copo de suco. “Com gelo, Silvanete!”.
Volto pro quarto e me deito um pouco na cama. Até abro um livro, mas o sono vem na primeira página. Cochilo.
É hora do almoço e a geladeira está vazia. Silvanete havia me avisado ontem, e até me chamou para irmos juntas ao supermercado. Quando ela foi pra sua casa, percebi que tinha me esquecido de sair com ela para as compras.
“Silvanete, liga pra comida chinesa? Eu quero frango xadrez e uns rolinhos primavera. Ah! E uma banana caramelada também! Pede o que você quiser. Vou tomar um banho. O dinheiro tá aqui na mesa. Você desce pra pegar, né?”
Depois do almoço, sento na frente do computador. Preciso trabalhar um pouco, fiquei de entregar estas planilhas até amanhã. “Tenho tempo. Um joguinho de paciência pra esquentar...”
“Tchau, Silvanete! Até amanhã! Ah!, Silvanete! Traz uns pãezinhos amanhã de manhã? É. Pão francês e daquele de leite. E uns dois de coco também. Tchau!”
A Silvanete é gente boa! Acho que ela tá certa: amanhã eu vou ao supermercado e vou pro escritório. Ela sabe que não é preguiça... É só que é tão bom ficar assim... E mudar pra quê?! Dá muito trabalho!

6.7.07

Destaque

Era mesmo uma mulher inteligente e esperta. Solteira, Joana tinha um namorado bonito e fiel. Gostavam-se. No trabalho, era a jornalista responsável pelo Caderno Cidades e, com isso, sabia de qualquer coisa que aconteceu, acontece e acontecerá em São Paulo. Comandava uma equipe de cinco outros jornalistas: fotógrafos, repórteres e colunistas.

O trabalho em grupo andava bem, mas todos os dias, quando fechavam a edição, tinha a certeza de que o Esportes, Mundo e Economia ganharam mais páginas coloridas e saíram mais bonitos e completos. Desejava ardentemente que lhe permitissem ter tantas cores quanto o Turismo e mais colunistas, como o TV e Cinema tinha. Mas, mais do que qualquer coisa, tremia de vontade de comandar a equipe da revista dominical!

A revista era o carro-chefe da edição de domingo. Era a responsável pelo jornal atingir o honroso segundo lugar nas vendas, derrotando adversários com muito mais história e passado.
Xodó de toda a redação, a revista era impressa em papel especial, as páginas eram 100% coloridas, os textos eram quase literários e não havia qualquer restrição de orçamento que fosse endereçada à Fátima, a jornalista responsável, colega de faculdade de nossa heroína.

Joana sabia que as parcas fotos coloridas a que tinha direito por edição, a falta de um colunista sequer e o número reduzido de páginas destinadas a seu caderno deviam ao fato de que ele era aquele que menos publicidade recebia. Na mente dos presidentes do jornal, nada mais correto, pois, que também fosse o caderno mais barato de ser produzido.
Era por esse motivo também que a jornalista responsável das Cidades era nossa Joana: dentre todos os colegas, era a mais inexperiente e aquela que menos brilho tinha para a arte da escrita. Seu salário estava diretamente relacionado ao peso que seu caderno tinha no jornal.

Nunca fora uma brilhante jornalista, nem nunca escrevera um livro. Seus principais artigos não chegavam a ser considerados textos literários, nem ao mesmo podiam ser classificados como um bom texto jornalístico. Conseguira seu lugar no jornal menos por saber reportar grandes acontecimentos e mais, muito mais!, por ter um senso absolutamente desprovido de censura para criticar o trabalho dos colegas. Apontava pequenos problemas onde devia reinar a perfeição. Era mestre neste assunto.

Há uns vinte dias, Fátima a convidou para ter uma coluna sobre as novidades noturnas da cidade na revista semanal. A idéia parecia excelente e ninguém entendeu o porquê de Joana recusar. Disse à colega que não podia aceitar, pois o trabalho nas Cidades andava ocupando-lhe muito tempo e, com isso, não poderia dedicar-se à coluna tanto quanto julgava necessário.
Frente à recusa, Fátima recorreu a outro colega: um amigo que trabalhava nos Esportes e, descolado como poucos, conhecia todas as novas casas noturnas, sabia das bandas que fariam sucesso na semana seguinte, conhecia os melhores e piores restaurantes e lanchonetes. Ele aceitou no ato e já no domingo publicaram seu primeiro texto: comparava uma nova balada com uma outra casa noturna que fizera sucesso anos atrás, mostrava o apogeu e a queda desta última e incitava a todos para impedir que isso acontece com a nova casa.

A coluna foi muito elogiada! Centenas de e-mail chegando à redação e louvando desde a qualidade do texto e as boas fotos apresentadas até a visão clara das modas noturnas da cidade.
Joana lembrou a ele que deveria ter se lembrado também daquele outro bar na Augusta, um muito pequeno, que só tocava rock, onde costumavam ir sempre anos atrás.

Semana seguinte, mais elogios! Ótima crítica sobre as salas de exibição e os filmes em cartaz em cada uma, com uma excelente descrição do perfil de freqüentadores dos cinemas espalhados pelos quatro cantos da cidade.
Joana, na segunda-feira, comentou que o Cine Risso havia ficado de fora da lista. “A sala mais cult dos anos 80”, disse ela.
O comentário gerou uma acalorada discussão entre os dois. E muito burburinho dentro do jornal.
O cara foi acusado de não aceitar críticas, de tomar como pessoal os comentários dispensados ao texto. O bate-boca rendeu fofocas até o fim da tarde.

No domingo, em casa, sozinha e sem definir a pauta da página dois, Joana pôs-se a ler o novo artigo. Agora versava sobre algumas pizzarias antigas e desconhecidas.
Cada palavra a enchia de prazer! Cada frase era tão bem escrita que amaldiçoava o amigo por escrever assim.
O texto todo era só deleite. O texto todo era contagiante! Do início ao fim!

Sabia que teria de se esforçar mais uma vez para criticar uma idéia tão bem colocada.

5.7.07

Perfeição

Via-se beleza dos pés à cabeça.
Nunca havia um único fio de cabelo fora do lugar. Os olhos amendoados, cor de mel, cílios espessos, longos e escuros. Maçãs do rosto bem desenhadas, altas. Rosto magro, corpo enxuto, pele lisa e macia.
Narcisa era bonita e sabia disso.

Andava nas ruas com ar imponente e cada vitrine lhe servia de espelho.
Sempre foi sinônimo de beleza onde quer que estivesse.

Sabia-se bonita e isso representava a ela mesma como o aval necessário pra inovar: vestia-se bem, com sofisticação e lançava moda no trabalho e entre as amigas e conhecidos.

Na mesa do bar, do restaurante, de um café, ou num bate-papo descomprometido num coffee break do trabalho contava sobre os livros, conjeturava idéias suas sobre filósofos, sociólogos. Mencionava o livro de física quântica que acabara de ler. Ao mesmo tempo, criticava a roupa que um novo rosto da TV aparecera ao seu lado na Fashion Week.

Se recebia ares de desprezo, fazia-se de blasé e entendia aqueles olhares como desejo de verem no espelho o que ela via: bonita, inteligente, culta, sofisticada.

Saía quase todas as noites. Ia a shoppings e salões de cabeleireiro com amigos e colegas fazendo as vezes de personal styler. Dava dicas de cosméticos novos, de como usar roupas e penteados.
Falava também sobre música e cinema e não raras vezes convidava um ou outro para uma apresentação de teatro, um show, uma exposição.
Atualmente, dispensa especial atenção a uma garota recém contratada em seu escritório: Irene é inteligente, esperta e bonita. Conversam muito, estão sempre juntas e Narcisa a aconselha em questões das mais diversas.
Irene até tem ficado mais bonita ainda, mais atraente.
Corre à boca pequena que uma é a versão mais nova da outra, mas ninguém quer dizer isso à Narcisa: temem deixá-la nervosa com a possibilidade de Irene tornar-se o centro das atenções.

Sozinha, em casa, Narcisa ri sozinha... Sabe bem que é impossível que outro alguém a ofusque. Diz para si mesma: “Charme, estilo e personalidade não se compram, não se vendem, nem se transmitem em conselhos. Mesmo que estes venham da fonte mais pura.”

3.7.07

Comer

Não era do tipo de pessoa que se sentia embaraçado por sentar-se sozinho no restaurante. Aliás, restaurantes, padarias, churrascarias, lanchonetes, cantinas, sorveteiras, docerias, casa de sucos, botecos, cafés eram a extensão de sua casa. Conhecia cada garçom, cada chef, cada manobrista. E não era do tipo fiel: variar as opções e conhecer novos lugares era quase um esporte para ele.
Embora não se importasse de se aventurar sozinho, eram raras as ocasiões em que um amigo ou outro não o acompanhasse a estas incursões pelo mundo da alta, baixa, média, enfim, pelo mundo da gastronomia.
A verdade é que todos os amigos sabiam que Lima entendia de tudo quando o assunto era comer: desde qual vinho é melhor para se saborear um pato assado com brócolis até o melhor pão francês da cidade, passando pelo sanduíche de pernil mais barato e saboroso.
Podia dar pareceres precisos quanto à qualidade da comida e reconhecia o sabor de qualquer tempero, mesmo se coentro também tivesse sido adicionado ao molho.
Sabia-se ligeiramente acima do peso, mas era de boa genética e, com isso, mesmo cometendo exageros, nunca tivera barriga proeminente.
Ao contrário do que alguns pensavam, preocupava com a aparência e era mesmo capaz de pedir que um amigo que estivesse um pouco fora de forma ficasse só na salada.
Chegara mesmo a arrancar choros abafados, mas, em se tratando de comida, não conhecia pudor ou reservas socialmente desejáveis.
Fora isso, conhecia seus limites e ousava sempre ultrapassá-los, mas sabia também que sua habilidade não era para todos e, em notando a “fraqueza” da companhia, acabava o jantar antes da sobremesa e sentava-se, mais tarde, sozinho, no balcão de uma boa padaria para um strudel de maçã, um sonho e um café com pão de mel.

Tempos atrás, Lima foi convidado a jantar na casa de uma amiga. Moça calma e alegre, gostava de reunir os amigos sempre que podia para comerem e bater papo.
As reuniões não eram freqüentes e eram esperadas com ansiedade pelos amigos que a tomavam como ótima cozinheira.
Nosso herói nunca tinha ido a um destes jantares. Na verdade, era a primeira vez que o convidavam para uma destas reuniões. Aceitou o convite sem hesitar e, no sábado à noite, chegou pontualmente à casa da amiga.
Fartou-se de pequenas quiches de gorgonzola e pães com sardela, enquanto degustava um saboroso vinho branco.
Provou duas vezes a salada verde com pêras e mangas, temperada com vinagre balsâmico, shoyo e mel.
Comeu com boa boca a carne assada acompanhada de um fino arroz com castanhas e amêndoas.
Na sobremesa, tiramisu e torta de limão foram ambas degustadas.

Depois do jantar, voltaram todos para o sofá para boa conversa e o café.
Era o momento preferido da anfitriã: após ter fartado todos seus amigos com suas deliciosas receitas, recebia, com sorriso nos olhos e um orgulho desmedido, os elogios pelos deliciosos pratos. Era a hora coletar seus louros! Era, para ela, o clímax do encontro e ansiava por ele tão logo convidava cada um para o jantar.
Papo vai, papo vem, pediram ao Lima que desse seu aval foi os comes e bebes.

Disse ele que havia sido muito bem servido. Faltava um pouco de pimenta na sardela e a gorgonzola não era da melhor qualidade. A massa da quiche poderia ser mais fresca e as pêras estavam um pouco verdes. Algumas finas fatias de bacon sobre a carne teriam deixado-na mais macia, talvez até um pouquinho de rum no tempero. O tiramisu estava mais amargo do que gostava e o chantilly da torta não estava no ponto. “Mas o jantar estava uma delícia! Nunca comera arroz tão sequinho!”

Nem bem Lima acabara seu discurso, a anfitriã já recolhera as xícaras e, com as expressões cansadas e pesarosas, insinuava que era hora de irem embora.
Na segunda-feira, ninguém comentava o jantar.
Lima nunca mais foi convidado para outra reunião daquele grupo de amigos.

Para ele, mais que qualquer outra coisa, a vida era agridoce!

9.3.07

Passa o tempo

“Não é isso que espero para mim. Não mais agora e também não no futuro.”
Disse isso com tal convicção, sem gaguejar ou enroscar em uma palavra sequer que, qualquer um que a ouvisse, estaria certo da veracidade do enunciado. Eu não.
Conheço-a muito bem e sei que não é de seu feitio mentir ou tentar ludibriar quem quer que seja, mas sei também que já é dela, talvez mesmo inconscientemente, a incapacidade de se expor completamente quando ainda carrega um sentimento mal ajeitado.
Sabia que todos a consideravam sensata e ponderada e por isso não consegui mostrar-se “em construção”.
Pensava ser impossível dar aos outros pistas de que ela mesma também sofria com indecisões e incoerências. E, nestas suas crises silenciosas, expressava verbalmente, no vazio de sua casa, aquela que acreditava ser a atitude mais racional e a que devesse ser seguida.
Vivia então com pequenos dilemas, em mundos paralelos: a realidade que a racionalidade a mandava seguir, e a outra, guiada pela emoção e a vontade; intransponíveis.
Aos olhos de todos era feliz. E era mesmo, embora comedida e quieta.
Via-se, ela mesma, como tranqüila e equilibrada, mas vez ou outra espantava pensamentos de que, talvez, um mundo mais feliz se descortinasse em meio a um turbilhão de coisas insensatas, desconexas e nonsenses.

Pensando sobre isso, deitou-se outro dia para dormir.
Jogada de costas na cama, ouvia o barulho dos carros passando e de pessoas animadamente conversando no bar da esquina.
Não teve coragem de descer. Nem ousaria. Tampouco lhe veio o sono. Passou a noite em claro e, às 6:30, desmaiou sob o edredom.
Ouviu o despertador e desligou. Decidida.
Mais tarde, o telefone. Soou alto duas, três, dez vezes, até parar. De novo. Não se moveu.

E assim o dia passou.
Pequenos cochilos preguiçosos, os olhos cansados do sono e ansiosos por mais uma soneca.
Por duas vezes foi à cozinha e trouxe frutas e um copo d’água. Não tomou banho, não se preocupou com a roupa; não aguou as plantas; não varreu o chão. Nada fez.
Como se nada tivesse se dado, às 7 da noite se levantou.
Tomou banho, preparou o jantar, saciou-se, limpou as louças e a pia e a roupa do dia seguinte. Dormiu.
Às 6:45 o despertador tocou. Maquinalmente o desligou e se pôs em pé. Junto dele, desligou a idéia de mudar o rumo do que quer que fosse.
No trabalho, a quem lhe interrogava, respondia calmamente: “Não foi nada. Perdeu-se a hora.”

6.12.06

Breve de um tanto

Seu amor foi breve de um tanto,
Curto e manso de um tanto,
Grande desencontro
Do meu tão bem querer,

Deixou-me só desencanto,
Um coração que não mando,
Duas fotografias, desfocadas e embaçadas,
Retratos fiéis dos meus dias sem você.

Depois de tudo, como convém,
Busquei mudar de rumo: fugi e fui ninguém.
Perdi, então, a dignidade e também qualquer coragem
De botar a vida a prumo.

Queria dizer que pouco importa,
Que a vida não é torta,
Mas é só você que me faz bem.

Renuncio qualquer proposta
Qualquer idéia, qualquer alguém:
A minha vida, nas suas mãos, está posta.

25.10.06

Sentidos

Dei agora para sentir o seu cheiro.
Dentro do carro, sozinho, na fila do banco, na padaria, no cinema, em casa.
Não o cheiro de seu perfume. O seu cheiro!
Aquele que me vinha de manhã, ao acordar; você ainda dormindo, ou só de olhos fechados, mão esquerda sob o rosto, pernas entrelaçadas; às vezes séria, outras, sorrindo.
Você ali, tão perto, que era impossível sair.

Dei pra ouvir sua voz, reconhecer seu timbre e imaginar, de novo, a textura das palavras pronunciadas.

Dei para te ver em toda menina pequena de cabelos lisos até os ombros. Em toda menina de olhos tristes na rua. Em toda mulher de saia rodada.

Dei para imaginar que você ainda está comigo. Dei para acreditar que é seu nome que vou ler quando o telefone tocar. Dei para pensar que ainda sou feliz.
Dei para pensar que ainda vivo.

20.9.06

Sei lá...

Sei lá de onde vem!
Talvez das vísceras ou de suas adjacências.
Vem dali de dentro o desconforto e o desarranjo e o mundo deixa de fazer sentido, e a vida torna-se uma seqüência de ações desconexas e estabanadas.

Sei lá de onde vem. Se do céu ou do vizinho, se de longe ou da casa ao lado, mas chega de repente e bagunça o que estava etiquetado, homologado, catalogado. Inverte os lados, desfaz a ordem, cria novo estatuto.

Sei lá de onde vem, mas chega manso, vem sem pretensão. Mostra a cara devagar, faz de conta que nem vai entrar, mas, sorrateiramente, passa rasteira no que era certo e se encaixa de tal modo que se julga, agora, ser imprescindível.

Arrebata, angustia, apavora; sei lá de onde vem, mas não vai mais embora.

24.8.06

Conjecturas

Mais importante do que quer que fosse, tinha ele percebido com isso tudo, e agora, que não há precisão em medidas como essa.
A balança não tem prumo e o irrelevante pode ser essencial.
Tinha passado já tanto tempo que os detalhes nem mais lhe existiam. Na verdade, até certas coisas antes grandes já eram, para ele, tidas como esquecidas, escondidas num fundo qualquer de sua memória.
Pensava não ter feito nada e nada ter deixado atrás ou para trás, mas isso tudo aos olhos dela eram uma imensidão. Montanhas de coisas boas ou ruins; montanhas de sentimentos que nunca mais viria a sentir, pensava ela, em seus delírios de incompreensão.
Passou ele, então, a se perguntar se viveram os dois juntos em realidades distintas. Conjecturou que talvez tivesse existido seu mundo fantástico e também o dela.
A idéia não vingou e continuou sem saber o que havia feito antes e se acaso existisse o que ser feito agora.
Desconsiderou até, em certa hora, sua própria opinião; talvez fossem delírios da febre alta.
Da caixa de seu chocolate preferido tirou mais um bombom. Releu o bilhete que veio junto com os doces. Tentava encontrar ali uma lógica.
Olhou o relógio, tomou o remédio da noite. Não se lembrava mais que, em tempos nem tão remotos, o antitérmico eram ela e os mesmos bombons.

1.8.06

Reta

Acordava todos os dias antes das seis.
Quando chegava à cozinha para preparar o café dos pais velhinhos, já havia rezado um terço à Nossa Senhora de Fátima pedindo que a abençoasse e a toda sua família.
Os pais acordavam, o café estava quente na garrafa, pães frescos sobre a mesa.

Desde que, aos vinte anos, os pais perceberam que não casaria, passou a se dedicar exclusivamente aos cuidados dos dois.
Namorados e namoradas dos irmãos foram chegando à casa, depois sobrinhos, mais crianças e, de repente, já era tia avó, mas continuava a cuidar da organização e da limpeza da casa, do almoço e da janta, das compras no supermercado, açougue e feira, das contas a serem pagas no banco.

Não perceberia que os anos estavam passando se, de muito tempo para cá, não precisasse retocar a raiz branca dos cabelos com uma rapidez maior, ou se não precisasse, também ela, ser consultada pelo cardiologista dos pais e tomar todos aqueles remédios para pressão alta, labirintite e as articulações que teimavam em doer a cada pequena variação do tempo.

Não tinha muitas amigas, mas, a quem comentasse que a vida dela não era fácil, que deveria pedir às irmãs alguma ajuda com a casa e os pais, respondia que não fazia por obrigação, fazia por gosto; e costume.

Acostumou-se a outras coisas também.
Quando pai e mãe se aposentaram, aprendeu a economizar. Teve um refresco quando ela mesma conseguiu se aposentar, mas, em tempos difíceis como agora, precisou fazer o dinheiro chegar ao fim do mês. Retomou então, já com quase 60, o hábito de costurar, e cosia calças, saias, camisas e pijamas, para ela e os pais.
Não gostava da atividade, sentia que os olhos cansados necessitavam de grande esforço para deixar o cerzido reto, mas acabou por se acostumar com isso também, e com o chop-chop da agulha no tecido. Aproveitava a hora da missa no rádio para se sentar à máquina e notou que, assim, o trabalho durava menos.

Quase não saía de casa para outras atividades que não as da casa, banco, médico e idas à igreja. Raramente se ausentava mais que hora e meia nestas saídas necessárias. Talvez por medo de deixar os pais sozinhos, talvez por medo de si mesma e do perigo que a rua representava...

Era quase certo que, na volta da visita à agência bancária para receber a pensão, ela, de roupas sóbrias e discretas, sentava-se num café. Pedia um chá e um doce, seu deleite no acompanhar o vai e vem apressado das pessoas no centro da cidade.
À medida em que bebericava do chá, o calor a invadia. Não só o corpo, mas também a alma.
Sentia como se não fosse mais ela, como se levantasse alguém dentro de si.
Cambaleante, ocupava seus olhos, a mente, as mãos e um botão da camisa era aberto; depois outro.
No calor, os músculos se contraíam e, talvez, vissem um sorriso aparecer. E os olhos semi-cerrados acompanhavam o esforço de, lenta e delicadamente, passar a ponta da língua pelos lábios cuidadosamente abertos, as mãos a roçar o pescoço e ajeitar os cabelos.
Acordava do sono acordada quando a torre da igreja anunciava a hora completa.
Intranqüila e nervosa, recompunha-se antes de sair rumo ao ônibus. Chegava em casa já escuro, mas ainda a tempo de acompanhar a missa pela TV. Sentava para fazer a barra de uma saia ou calça, pregar um botão.

Invariavelmente, nestes dias, dispensava o dedal picando a ponta do indicador.

6.7.06

Encontro

Lembrou-se dos diversos telefonemas não-atendidos, das desculpas que ele dava ordens à mãe para contar. Foram algumas semanas seguidas em que ela tentou contato deixando recados na secretária eletrônica. Ele não retornou nenhum, nem respondeu a e-mails em que ela pedia para se encontrarem para um café e alguns instantes de conversa. A verdade é que, enquanto ela tentava falar com ele, também fazia um mês que ele tentava esquecer o fim triste e inesperado do namoro. Relacionamento este a que ela mesma pôs um fim, dizendo fazê-lo a contragosto e por não conseguir ficar ao lado de alguém que já não gostava dela como seria necessário.
Lembrou-se disso enquanto se encaminhava para o caixa da livraria e a viu logo a sua frente com alguns CDs e livros em mãos, tirando a carteira da bolsa.
Parou por uns segundos decidindo o que falaria. Pensou primeiro em chamá-la “Isabel! Há quanto tempo! Como está?”, mas logo afastou a idéia da cabeça.
Tinha já quase seis anos desde o rompimento. Quase seis anos, e desde aquela data nunca mais tinham se visto. Seria, então, estranho demonstrar tanta familiaridade ainda.
Ela continuava bonita como dela se lembrava.
Resolveu ir ao encontro dela. Ensaiou um simples “oi, como está”, quando uma menina, vindo do setor de revistas, foi mais ágil, agarrou-a pelas mãos, pedindo “mãe, compra estas figurinhas”.

Percebeu que a vida havia passado. Notou que ela tinha se casado e que era mãe.

A fila andou e se aproximaram. Ela ainda sem vê-lo, faltou a ele a coragem para conversar, mesmo quando a menina deixou a mãe para ver outras revistinhas. Quando Isabel terminou de pagar e voltava a carteira na bolsa, sacolas na mão, virou-se e percebeu-o ali.
Ele não saberia dizer, mais tarde, qual reação ela verdadeiramente tivera, mas foi possível perceber um olhar surpreso.
O coração dela bateu mais forte diante do rosto que não esperava encontrar ali e sentiu-se empalidecer. Lembrou-se, então, do namoro e do namorado aos quais teve de abdicar por perceber que não mais dela gostava. Veio-lhe à memória o sofrimento passado nos dias que seguiram ao fim; lembrou-se também das tentativas de com ele conversar e poder contar-lhe o porquê de toda sua aflição naqueles dias. Passou as mãos pelos cabelos, ajeitando-os e tirando a franja dos olhos.
Sempre tivera ela este hábito e ele sempre soube tratar de uma espécie de tique manifestado em momentos nos quais ela não tinha a menor idéia do que fazer, o que dizer, como se comportar.

Olharam-se quietos, e seria clichê demais dizer que aquele olhar durou a eles uma infinidade, mas, de fato, pareceu-lhes.
Nem um nem outro queria reencontrar a antiga companhia. Podem até pensar que não estavam preparados para tal encontro, que ficariam encabulados em se verem depois de tanto tempo, mas a verdade é só que não queriam mais se ver.
Ele, não quisera mais. Logo que deixaram de ser namorados e ele começou a sair com tantas outras moças, não quis mais rever aquela mulher com quem pensou que se casaria e a qual, um dia, percebeu não mais amar. Ela perdera a vontade há tanto tempo que nem sabe mais quando; talvez tivesse sido logo depois das inúmeras tentativas de não pensar mais nele.
Mas agora não adiantava nada. Estavam a menos de um metro um do outro, não havia onde esconder, o que disfarçar.
Cumprimentaram-se. Ele disse que não imaginava encontrá-la ali. Havia se mudado? Não morava mais no Centro? E Isabel respondeu que sim, que há mais de três anos não morava mais no centro, mas no apartamento do marido, a menos de duas quadras da livraria. E você, César? E ele também morava ali perto, aliás, trabalhava também ali no bairro: abrira um pequeno escritório tempos atrás e, agora, já tinha vários clientes e precisara até contratar três outros advogados, e mesmo estagiários.
Já não tinham mais o que falar quando ele disse que havia visto a filha dela. Linda menina. Muita parecida com você, os cabelos claros e lisos, os olhos vivos. Percebeu-a mexendo novamente nos cabelos. Pensou que ela ainda não havia se acostumado a receber elogios, a ouvir dizerem-lhe que era bonita.

Estavam quase se despedindo e a menina voltou. Vinha junto com um homem. Foram apresentados. Este é meu marido, meu querido João; César é um velho amigo, nos conhecemos ainda na faculdade; e o marido sugeriu um café e alguns momentos mais de conversa.

Comentaram banalidades da capa dos jornais expostos ao lado, conversaram sobre os empregos, o que estavam fazendo, riram, os dois homens, da absurda convocação argentina para o próximo jogo contra o Brasil. Enquanto isso, mãe e filha organizavam em ordem crescente as figurinhas a serem coladas no álbum recém-comprado.
João disse não lembrar de César na festa do casamento, e ela, rápida, respondeu que não se viam mesmo há muito tempo, e que, desde então, não tinha o endereço dele para enviar o convite.
Os dois homens pareciam velhos conhecidos distraídos e animados que estavam na conversa, e a menina, atrapalhando-se com um pacote de figurinhas, pediu ao amigo uma ajuda para abri-lo.
Conversaram, César e a menina, por alguns segundos. Contou-lhe que ele mesmo preenchera vários álbuns quando ainda era garoto, da idade dela; e ela contou que faria cinco anos na próxima semana e ele poderia ir à festa. Cinco anos, ela disse, uma mão cheia de aniversários!

Ao terminarem o café, César se levantou, disse que precisava ir. Estava tarde e ainda tinha que fazer supermercado. A menina juntou as figurinhas repetidas e perguntou se ele não as queria levar para sua filha, mas o amigo da mãe, enquanto voltava-se para o casal a fim de se despedir, disse à menina que não tinha filhos. Mais uma vez, Isabel ajeitou, encabulada, o cabelo; e ele achou ter percebido marejados os bonitos olhos da ex-namorada.

21.6.06

Café

A vida e ela resolveram que não estudaria mais do que a oitava série.
Começou a trabalhar cedo, com 15 anos, primeiro como babá, depois como empregada doméstica, chegou a caixa de supermercado.
Em um mês de junho, desempregada, arriscou-se no trabalho de colher café. Disseram-lhe que, em se esforçando, conseguia fazer R$25,00 no fim do dia e assim ela foi.
Sacola nas mãos, virou bóia-fria e desembalou-se para o sítio quando ainda não eram 6:00 da manhã, o sol não havia aparecido e o frio de fim de outono cortava-lhe o rosto descoberto na carroceria do caminhão sentada junto a tantos outros calados trabalhadores.
Os primeiros movimentos na lavoura foram ágeis num sobe e desce de mãos e braços à procura dos grãos mais altos no pé de café. Às 9:30, pararam para o almoço e contabilizou os primeiros arranhões e uma bolha próxima ao mindinho, na palma da mão esquerda. Voltou ao trabalho lamentando a dor a cada novo puxão nos galhos vermelhos do grão da bebida. Um colega ao lado, quieto até então, chegou-se mais perto e ensinou-lhe, em poucas palavras, como puxar os grãos e machucar-se menos. Suas mãos se tocaram durante um segundo (talvez nem isso!) e ela pode perceber a aspereza das mãos dele e passou o dia a pensar em quantos outros anos ele já não teria enfrentado aquele trabalho duro que ela pensava em não continuar nem o primeiro dia findo. Mas amanhã chegou cedo à praça onde o caminhão passava para buscá-la e enfrentou mais um dia.
Uma faixa colocada às mãos permitiu-lhe um dia de trabalho mais proveitoso e menos dolorido. À hora do café da tarde, o mesmo colega trouxe-lhe uma laranja apanhada de um pomar ali do lado. Agradeceu a fruta, mas também os conselhos do dia anterior, mostrou-lhe a bandagem e conversaram não mais que dez palavras.
E assim foi. Sentavam-se sempre próximos de manhã na carroceria do caminhão, almoçavam lado a lado e sempre ela tirava um pedaço de bolo ou de pão de sua sacola e dava a ele a maior metade. Conversava ela e ele só sorria. Chegaram mesmo a se divertir esquecendo a dureza do trabalho pesado.
Em setembro, fim de colheita, ainda pouco ele falava, embora não dispensasse a companhia dela. E ela, novamente desempregada, voltou a fazer faxinas aqui e acolá.
Encontravam-se dia sim dia não até a noite em que ele lhe disse que precisaria se mudar: a família toda estava rumando para outra cidade e não poderia pagar aluguel e outras contas sozinho. Ela não pensou mais que cinco segundos e conversou em seguida com o pai; e o moço, na outra semana, já morava no quartinho pequeno e isolado num canto do quintal da casa dela.
Ano seguinte, foram juntos panhar café. Ela preparava-lhe seu almoço e também o dela mesma e guardava cada qual em sua sacola junto a uma garrafa de água.
Num fim de tarde, ao concluir mais um pé, ela de costas para o sol, cabelos soltando um pouco do rabo firme, nariz franzido num risinho bobo, rosto cansado, suado e sujo do pó fino de areia e café, teve ele a certeza de que com ela se casaria. Decidiu que todas as economias juntadas nesta colheita seriam usadas para colocar um piso melhor no quartinho dele e fazer um banheiro ali do lado.
Na outra colheita, foram juntos, uma só sacola.

1.6.06

Schrödinger

Se é o meu desprezo o que você quer, dou-lhe.
Todo, inteiro.
Um profundo silêncio, nenhum olhar de lado.

Isso não lhe incomoda. Nem nunca irá.
Estou certa.
Meu desprezo a você é desprezo meu a mim.

Desaprendi a não pensar em você. A todo instante.
Desprezar-lhe é não me ser.
Desprezar-lhe é me anular, inexistir.

Só sou em você.