Ça n'est pas vrai!

24.8.06

Conjecturas

Mais importante do que quer que fosse, tinha ele percebido com isso tudo, e agora, que não há precisão em medidas como essa.
A balança não tem prumo e o irrelevante pode ser essencial.
Tinha passado já tanto tempo que os detalhes nem mais lhe existiam. Na verdade, até certas coisas antes grandes já eram, para ele, tidas como esquecidas, escondidas num fundo qualquer de sua memória.
Pensava não ter feito nada e nada ter deixado atrás ou para trás, mas isso tudo aos olhos dela eram uma imensidão. Montanhas de coisas boas ou ruins; montanhas de sentimentos que nunca mais viria a sentir, pensava ela, em seus delírios de incompreensão.
Passou ele, então, a se perguntar se viveram os dois juntos em realidades distintas. Conjecturou que talvez tivesse existido seu mundo fantástico e também o dela.
A idéia não vingou e continuou sem saber o que havia feito antes e se acaso existisse o que ser feito agora.
Desconsiderou até, em certa hora, sua própria opinião; talvez fossem delírios da febre alta.
Da caixa de seu chocolate preferido tirou mais um bombom. Releu o bilhete que veio junto com os doces. Tentava encontrar ali uma lógica.
Olhou o relógio, tomou o remédio da noite. Não se lembrava mais que, em tempos nem tão remotos, o antitérmico eram ela e os mesmos bombons.

1.8.06

Reta

Acordava todos os dias antes das seis.
Quando chegava à cozinha para preparar o café dos pais velhinhos, já havia rezado um terço à Nossa Senhora de Fátima pedindo que a abençoasse e a toda sua família.
Os pais acordavam, o café estava quente na garrafa, pães frescos sobre a mesa.

Desde que, aos vinte anos, os pais perceberam que não casaria, passou a se dedicar exclusivamente aos cuidados dos dois.
Namorados e namoradas dos irmãos foram chegando à casa, depois sobrinhos, mais crianças e, de repente, já era tia avó, mas continuava a cuidar da organização e da limpeza da casa, do almoço e da janta, das compras no supermercado, açougue e feira, das contas a serem pagas no banco.

Não perceberia que os anos estavam passando se, de muito tempo para cá, não precisasse retocar a raiz branca dos cabelos com uma rapidez maior, ou se não precisasse, também ela, ser consultada pelo cardiologista dos pais e tomar todos aqueles remédios para pressão alta, labirintite e as articulações que teimavam em doer a cada pequena variação do tempo.

Não tinha muitas amigas, mas, a quem comentasse que a vida dela não era fácil, que deveria pedir às irmãs alguma ajuda com a casa e os pais, respondia que não fazia por obrigação, fazia por gosto; e costume.

Acostumou-se a outras coisas também.
Quando pai e mãe se aposentaram, aprendeu a economizar. Teve um refresco quando ela mesma conseguiu se aposentar, mas, em tempos difíceis como agora, precisou fazer o dinheiro chegar ao fim do mês. Retomou então, já com quase 60, o hábito de costurar, e cosia calças, saias, camisas e pijamas, para ela e os pais.
Não gostava da atividade, sentia que os olhos cansados necessitavam de grande esforço para deixar o cerzido reto, mas acabou por se acostumar com isso também, e com o chop-chop da agulha no tecido. Aproveitava a hora da missa no rádio para se sentar à máquina e notou que, assim, o trabalho durava menos.

Quase não saía de casa para outras atividades que não as da casa, banco, médico e idas à igreja. Raramente se ausentava mais que hora e meia nestas saídas necessárias. Talvez por medo de deixar os pais sozinhos, talvez por medo de si mesma e do perigo que a rua representava...

Era quase certo que, na volta da visita à agência bancária para receber a pensão, ela, de roupas sóbrias e discretas, sentava-se num café. Pedia um chá e um doce, seu deleite no acompanhar o vai e vem apressado das pessoas no centro da cidade.
À medida em que bebericava do chá, o calor a invadia. Não só o corpo, mas também a alma.
Sentia como se não fosse mais ela, como se levantasse alguém dentro de si.
Cambaleante, ocupava seus olhos, a mente, as mãos e um botão da camisa era aberto; depois outro.
No calor, os músculos se contraíam e, talvez, vissem um sorriso aparecer. E os olhos semi-cerrados acompanhavam o esforço de, lenta e delicadamente, passar a ponta da língua pelos lábios cuidadosamente abertos, as mãos a roçar o pescoço e ajeitar os cabelos.
Acordava do sono acordada quando a torre da igreja anunciava a hora completa.
Intranqüila e nervosa, recompunha-se antes de sair rumo ao ônibus. Chegava em casa já escuro, mas ainda a tempo de acompanhar a missa pela TV. Sentava para fazer a barra de uma saia ou calça, pregar um botão.

Invariavelmente, nestes dias, dispensava o dedal picando a ponta do indicador.