Ça n'est pas vrai!

10.7.07

Raiva

Acordou mais cedo que o normal.
Um barulho incessante debaixo de sua janela irritou-o e deu-lhe a certeza de que a alegria é animalesca; mostra-se em expressões guturais, singularmente enervantes.
Tanto barulho e tanta alegria, tanta confusão que seu objetivo de vida naquele momento era eliminar a fonte do que via como um êxtase exagerado e despropositado, um êxtase desvairado e irracional.
Correu à janela e gritou meia dúzia de despautérios e palavrões. Palavras capazes de corar qualquer um, mas, mesmo assim, palavras insuficientes para equilibrar seu desgosto frente a tal tormento.

Rapidamente deu-se conta de que não conseguiria voltar à cama, pois a raiva aumentaria a cada segundo que tentasse dormir de novo e o sono, perturbado com aquela agitação estúpida, não viesse: estava realmente agitado com aquilo. O coração batia forte: podia senti-lo como se estivesse dentro do cérebro; ouvia-o nitidamente a bombear com batidas cada vez menos espaçadas, a fronte queimando num acréscimo sem precedentes. Suava pensando na noite de sono que haviam lhe roubado.

Levantou-se e mudou a roupa. A esta altura o sono não viria mais e resolver descer e ver se restava alguém na rua.
Na portaria, o vigia da madrugada deu-lhe, surpreso, “um bom dia, seu Irani”. Bom rapaz.
Ficou sabendo ali mesmo que o barulho fora uma turma voltando da balada, animada e conversando enquanto o semáforo mostrava-lhes a luz ainda vermelha. Passaram e sumiram tão logo se fez o verde.

Não quis voltar pra casa e decidiu andar até a padaria.
Gilson, o garçom de sempre, trouxe o café e comentou o futebol.
Na verdade, nosso personagem principal nada sabe de futebol, times e jogadores. Nada sabe de esportes ou práticas que, a seu ver, envolvam multidões doentes gritando, torcendo, chorando, comemorando juntas.

Com o movimento fraco, Gilson pára uns instantes em pé em frente a sua mesa e ele bem sabe que é só concordar um pouco, perguntar o placar, reclamar do juiz que fica a impressão de que se é expert no assunto.

Ainda jogavam conversa fora quando o dia clareou e a padaria começou a se encher. O dono, do balcão, gritou ao Gilson que ele não estava em casa.
Irani observou o colega de papo sair atrapalhado e envergonhado, faces vermelhas e cabisbaixo, sem encarar os fregueses, enfiar-se atrás do balcão e vestir um sorriso para atender ao próximo.

Na saída, não levantou os olhos para não ter que cruzar olhares com o dono da padaria e sua testa sempre suada.
Entregou a nota escondida no punho cerrado ao bonachão e agradeceu que o rosto dele estivesse protegido atrás dos maços de cigarro do caixa. Mentalmente viu-se quebrando o vidro e tirando este ser que lhe causava asco de lá de dentro, os cigarros se espalhando pelo chão da padaria. Viu-se esmurrando com a mão direita as gordas bochechas. Sentiu os nós dos dedos doerem ao encontrar o nariz já ensangüentado.
Pegou o troco e saiu da padaria ainda sem conseguir levantar os olhos, mas os sentia arderem, vermelhos que estavam.
Cor de sangue, cor de sua raiva.

7.7.07

Preguiiiiiça

O despertador berrou às 9:30. Por um instante não entendi o porquê daquilo, mas logo me lembrei que eu mesma tinha-o ativado na noite anterior.
Isso tem se tornado um hábito: todas as noites, antes de dormir, programo o despertador e penso positivamente que na manhã seguinte vou encarar o trabalho com vontade.
Toca o despertador, levanto, vou ao banheiro, e, ainda descabelada, tomo meu café sentada no sofá, ligo a televisão. “Mais dez minutos”, prometo a mim mesma, “e me troco pra ir trabalhar”. Mas aí começa a passar um episódio que ainda não vi, depois vêm as notícias. Decido ficar em casa, “home office é tudo”. Ligo o computador sentada no sofá. A faxineira pede pra limpar a sala, peço para ela trazer um copo de suco. “Com gelo, Silvanete!”.
Volto pro quarto e me deito um pouco na cama. Até abro um livro, mas o sono vem na primeira página. Cochilo.
É hora do almoço e a geladeira está vazia. Silvanete havia me avisado ontem, e até me chamou para irmos juntas ao supermercado. Quando ela foi pra sua casa, percebi que tinha me esquecido de sair com ela para as compras.
“Silvanete, liga pra comida chinesa? Eu quero frango xadrez e uns rolinhos primavera. Ah! E uma banana caramelada também! Pede o que você quiser. Vou tomar um banho. O dinheiro tá aqui na mesa. Você desce pra pegar, né?”
Depois do almoço, sento na frente do computador. Preciso trabalhar um pouco, fiquei de entregar estas planilhas até amanhã. “Tenho tempo. Um joguinho de paciência pra esquentar...”
“Tchau, Silvanete! Até amanhã! Ah!, Silvanete! Traz uns pãezinhos amanhã de manhã? É. Pão francês e daquele de leite. E uns dois de coco também. Tchau!”
A Silvanete é gente boa! Acho que ela tá certa: amanhã eu vou ao supermercado e vou pro escritório. Ela sabe que não é preguiça... É só que é tão bom ficar assim... E mudar pra quê?! Dá muito trabalho!

6.7.07

Destaque

Era mesmo uma mulher inteligente e esperta. Solteira, Joana tinha um namorado bonito e fiel. Gostavam-se. No trabalho, era a jornalista responsável pelo Caderno Cidades e, com isso, sabia de qualquer coisa que aconteceu, acontece e acontecerá em São Paulo. Comandava uma equipe de cinco outros jornalistas: fotógrafos, repórteres e colunistas.

O trabalho em grupo andava bem, mas todos os dias, quando fechavam a edição, tinha a certeza de que o Esportes, Mundo e Economia ganharam mais páginas coloridas e saíram mais bonitos e completos. Desejava ardentemente que lhe permitissem ter tantas cores quanto o Turismo e mais colunistas, como o TV e Cinema tinha. Mas, mais do que qualquer coisa, tremia de vontade de comandar a equipe da revista dominical!

A revista era o carro-chefe da edição de domingo. Era a responsável pelo jornal atingir o honroso segundo lugar nas vendas, derrotando adversários com muito mais história e passado.
Xodó de toda a redação, a revista era impressa em papel especial, as páginas eram 100% coloridas, os textos eram quase literários e não havia qualquer restrição de orçamento que fosse endereçada à Fátima, a jornalista responsável, colega de faculdade de nossa heroína.

Joana sabia que as parcas fotos coloridas a que tinha direito por edição, a falta de um colunista sequer e o número reduzido de páginas destinadas a seu caderno deviam ao fato de que ele era aquele que menos publicidade recebia. Na mente dos presidentes do jornal, nada mais correto, pois, que também fosse o caderno mais barato de ser produzido.
Era por esse motivo também que a jornalista responsável das Cidades era nossa Joana: dentre todos os colegas, era a mais inexperiente e aquela que menos brilho tinha para a arte da escrita. Seu salário estava diretamente relacionado ao peso que seu caderno tinha no jornal.

Nunca fora uma brilhante jornalista, nem nunca escrevera um livro. Seus principais artigos não chegavam a ser considerados textos literários, nem ao mesmo podiam ser classificados como um bom texto jornalístico. Conseguira seu lugar no jornal menos por saber reportar grandes acontecimentos e mais, muito mais!, por ter um senso absolutamente desprovido de censura para criticar o trabalho dos colegas. Apontava pequenos problemas onde devia reinar a perfeição. Era mestre neste assunto.

Há uns vinte dias, Fátima a convidou para ter uma coluna sobre as novidades noturnas da cidade na revista semanal. A idéia parecia excelente e ninguém entendeu o porquê de Joana recusar. Disse à colega que não podia aceitar, pois o trabalho nas Cidades andava ocupando-lhe muito tempo e, com isso, não poderia dedicar-se à coluna tanto quanto julgava necessário.
Frente à recusa, Fátima recorreu a outro colega: um amigo que trabalhava nos Esportes e, descolado como poucos, conhecia todas as novas casas noturnas, sabia das bandas que fariam sucesso na semana seguinte, conhecia os melhores e piores restaurantes e lanchonetes. Ele aceitou no ato e já no domingo publicaram seu primeiro texto: comparava uma nova balada com uma outra casa noturna que fizera sucesso anos atrás, mostrava o apogeu e a queda desta última e incitava a todos para impedir que isso acontece com a nova casa.

A coluna foi muito elogiada! Centenas de e-mail chegando à redação e louvando desde a qualidade do texto e as boas fotos apresentadas até a visão clara das modas noturnas da cidade.
Joana lembrou a ele que deveria ter se lembrado também daquele outro bar na Augusta, um muito pequeno, que só tocava rock, onde costumavam ir sempre anos atrás.

Semana seguinte, mais elogios! Ótima crítica sobre as salas de exibição e os filmes em cartaz em cada uma, com uma excelente descrição do perfil de freqüentadores dos cinemas espalhados pelos quatro cantos da cidade.
Joana, na segunda-feira, comentou que o Cine Risso havia ficado de fora da lista. “A sala mais cult dos anos 80”, disse ela.
O comentário gerou uma acalorada discussão entre os dois. E muito burburinho dentro do jornal.
O cara foi acusado de não aceitar críticas, de tomar como pessoal os comentários dispensados ao texto. O bate-boca rendeu fofocas até o fim da tarde.

No domingo, em casa, sozinha e sem definir a pauta da página dois, Joana pôs-se a ler o novo artigo. Agora versava sobre algumas pizzarias antigas e desconhecidas.
Cada palavra a enchia de prazer! Cada frase era tão bem escrita que amaldiçoava o amigo por escrever assim.
O texto todo era só deleite. O texto todo era contagiante! Do início ao fim!

Sabia que teria de se esforçar mais uma vez para criticar uma idéia tão bem colocada.

5.7.07

Perfeição

Via-se beleza dos pés à cabeça.
Nunca havia um único fio de cabelo fora do lugar. Os olhos amendoados, cor de mel, cílios espessos, longos e escuros. Maçãs do rosto bem desenhadas, altas. Rosto magro, corpo enxuto, pele lisa e macia.
Narcisa era bonita e sabia disso.

Andava nas ruas com ar imponente e cada vitrine lhe servia de espelho.
Sempre foi sinônimo de beleza onde quer que estivesse.

Sabia-se bonita e isso representava a ela mesma como o aval necessário pra inovar: vestia-se bem, com sofisticação e lançava moda no trabalho e entre as amigas e conhecidos.

Na mesa do bar, do restaurante, de um café, ou num bate-papo descomprometido num coffee break do trabalho contava sobre os livros, conjeturava idéias suas sobre filósofos, sociólogos. Mencionava o livro de física quântica que acabara de ler. Ao mesmo tempo, criticava a roupa que um novo rosto da TV aparecera ao seu lado na Fashion Week.

Se recebia ares de desprezo, fazia-se de blasé e entendia aqueles olhares como desejo de verem no espelho o que ela via: bonita, inteligente, culta, sofisticada.

Saía quase todas as noites. Ia a shoppings e salões de cabeleireiro com amigos e colegas fazendo as vezes de personal styler. Dava dicas de cosméticos novos, de como usar roupas e penteados.
Falava também sobre música e cinema e não raras vezes convidava um ou outro para uma apresentação de teatro, um show, uma exposição.
Atualmente, dispensa especial atenção a uma garota recém contratada em seu escritório: Irene é inteligente, esperta e bonita. Conversam muito, estão sempre juntas e Narcisa a aconselha em questões das mais diversas.
Irene até tem ficado mais bonita ainda, mais atraente.
Corre à boca pequena que uma é a versão mais nova da outra, mas ninguém quer dizer isso à Narcisa: temem deixá-la nervosa com a possibilidade de Irene tornar-se o centro das atenções.

Sozinha, em casa, Narcisa ri sozinha... Sabe bem que é impossível que outro alguém a ofusque. Diz para si mesma: “Charme, estilo e personalidade não se compram, não se vendem, nem se transmitem em conselhos. Mesmo que estes venham da fonte mais pura.”

3.7.07

Comer

Não era do tipo de pessoa que se sentia embaraçado por sentar-se sozinho no restaurante. Aliás, restaurantes, padarias, churrascarias, lanchonetes, cantinas, sorveteiras, docerias, casa de sucos, botecos, cafés eram a extensão de sua casa. Conhecia cada garçom, cada chef, cada manobrista. E não era do tipo fiel: variar as opções e conhecer novos lugares era quase um esporte para ele.
Embora não se importasse de se aventurar sozinho, eram raras as ocasiões em que um amigo ou outro não o acompanhasse a estas incursões pelo mundo da alta, baixa, média, enfim, pelo mundo da gastronomia.
A verdade é que todos os amigos sabiam que Lima entendia de tudo quando o assunto era comer: desde qual vinho é melhor para se saborear um pato assado com brócolis até o melhor pão francês da cidade, passando pelo sanduíche de pernil mais barato e saboroso.
Podia dar pareceres precisos quanto à qualidade da comida e reconhecia o sabor de qualquer tempero, mesmo se coentro também tivesse sido adicionado ao molho.
Sabia-se ligeiramente acima do peso, mas era de boa genética e, com isso, mesmo cometendo exageros, nunca tivera barriga proeminente.
Ao contrário do que alguns pensavam, preocupava com a aparência e era mesmo capaz de pedir que um amigo que estivesse um pouco fora de forma ficasse só na salada.
Chegara mesmo a arrancar choros abafados, mas, em se tratando de comida, não conhecia pudor ou reservas socialmente desejáveis.
Fora isso, conhecia seus limites e ousava sempre ultrapassá-los, mas sabia também que sua habilidade não era para todos e, em notando a “fraqueza” da companhia, acabava o jantar antes da sobremesa e sentava-se, mais tarde, sozinho, no balcão de uma boa padaria para um strudel de maçã, um sonho e um café com pão de mel.

Tempos atrás, Lima foi convidado a jantar na casa de uma amiga. Moça calma e alegre, gostava de reunir os amigos sempre que podia para comerem e bater papo.
As reuniões não eram freqüentes e eram esperadas com ansiedade pelos amigos que a tomavam como ótima cozinheira.
Nosso herói nunca tinha ido a um destes jantares. Na verdade, era a primeira vez que o convidavam para uma destas reuniões. Aceitou o convite sem hesitar e, no sábado à noite, chegou pontualmente à casa da amiga.
Fartou-se de pequenas quiches de gorgonzola e pães com sardela, enquanto degustava um saboroso vinho branco.
Provou duas vezes a salada verde com pêras e mangas, temperada com vinagre balsâmico, shoyo e mel.
Comeu com boa boca a carne assada acompanhada de um fino arroz com castanhas e amêndoas.
Na sobremesa, tiramisu e torta de limão foram ambas degustadas.

Depois do jantar, voltaram todos para o sofá para boa conversa e o café.
Era o momento preferido da anfitriã: após ter fartado todos seus amigos com suas deliciosas receitas, recebia, com sorriso nos olhos e um orgulho desmedido, os elogios pelos deliciosos pratos. Era a hora coletar seus louros! Era, para ela, o clímax do encontro e ansiava por ele tão logo convidava cada um para o jantar.
Papo vai, papo vem, pediram ao Lima que desse seu aval foi os comes e bebes.

Disse ele que havia sido muito bem servido. Faltava um pouco de pimenta na sardela e a gorgonzola não era da melhor qualidade. A massa da quiche poderia ser mais fresca e as pêras estavam um pouco verdes. Algumas finas fatias de bacon sobre a carne teriam deixado-na mais macia, talvez até um pouquinho de rum no tempero. O tiramisu estava mais amargo do que gostava e o chantilly da torta não estava no ponto. “Mas o jantar estava uma delícia! Nunca comera arroz tão sequinho!”

Nem bem Lima acabara seu discurso, a anfitriã já recolhera as xícaras e, com as expressões cansadas e pesarosas, insinuava que era hora de irem embora.
Na segunda-feira, ninguém comentava o jantar.
Lima nunca mais foi convidado para outra reunião daquele grupo de amigos.

Para ele, mais que qualquer outra coisa, a vida era agridoce!