Ça n'est pas vrai!

21.6.06

Café

A vida e ela resolveram que não estudaria mais do que a oitava série.
Começou a trabalhar cedo, com 15 anos, primeiro como babá, depois como empregada doméstica, chegou a caixa de supermercado.
Em um mês de junho, desempregada, arriscou-se no trabalho de colher café. Disseram-lhe que, em se esforçando, conseguia fazer R$25,00 no fim do dia e assim ela foi.
Sacola nas mãos, virou bóia-fria e desembalou-se para o sítio quando ainda não eram 6:00 da manhã, o sol não havia aparecido e o frio de fim de outono cortava-lhe o rosto descoberto na carroceria do caminhão sentada junto a tantos outros calados trabalhadores.
Os primeiros movimentos na lavoura foram ágeis num sobe e desce de mãos e braços à procura dos grãos mais altos no pé de café. Às 9:30, pararam para o almoço e contabilizou os primeiros arranhões e uma bolha próxima ao mindinho, na palma da mão esquerda. Voltou ao trabalho lamentando a dor a cada novo puxão nos galhos vermelhos do grão da bebida. Um colega ao lado, quieto até então, chegou-se mais perto e ensinou-lhe, em poucas palavras, como puxar os grãos e machucar-se menos. Suas mãos se tocaram durante um segundo (talvez nem isso!) e ela pode perceber a aspereza das mãos dele e passou o dia a pensar em quantos outros anos ele já não teria enfrentado aquele trabalho duro que ela pensava em não continuar nem o primeiro dia findo. Mas amanhã chegou cedo à praça onde o caminhão passava para buscá-la e enfrentou mais um dia.
Uma faixa colocada às mãos permitiu-lhe um dia de trabalho mais proveitoso e menos dolorido. À hora do café da tarde, o mesmo colega trouxe-lhe uma laranja apanhada de um pomar ali do lado. Agradeceu a fruta, mas também os conselhos do dia anterior, mostrou-lhe a bandagem e conversaram não mais que dez palavras.
E assim foi. Sentavam-se sempre próximos de manhã na carroceria do caminhão, almoçavam lado a lado e sempre ela tirava um pedaço de bolo ou de pão de sua sacola e dava a ele a maior metade. Conversava ela e ele só sorria. Chegaram mesmo a se divertir esquecendo a dureza do trabalho pesado.
Em setembro, fim de colheita, ainda pouco ele falava, embora não dispensasse a companhia dela. E ela, novamente desempregada, voltou a fazer faxinas aqui e acolá.
Encontravam-se dia sim dia não até a noite em que ele lhe disse que precisaria se mudar: a família toda estava rumando para outra cidade e não poderia pagar aluguel e outras contas sozinho. Ela não pensou mais que cinco segundos e conversou em seguida com o pai; e o moço, na outra semana, já morava no quartinho pequeno e isolado num canto do quintal da casa dela.
Ano seguinte, foram juntos panhar café. Ela preparava-lhe seu almoço e também o dela mesma e guardava cada qual em sua sacola junto a uma garrafa de água.
Num fim de tarde, ao concluir mais um pé, ela de costas para o sol, cabelos soltando um pouco do rabo firme, nariz franzido num risinho bobo, rosto cansado, suado e sujo do pó fino de areia e café, teve ele a certeza de que com ela se casaria. Decidiu que todas as economias juntadas nesta colheita seriam usadas para colocar um piso melhor no quartinho dele e fazer um banheiro ali do lado.
Na outra colheita, foram juntos, uma só sacola.

1.6.06

Schrödinger

Se é o meu desprezo o que você quer, dou-lhe.
Todo, inteiro.
Um profundo silêncio, nenhum olhar de lado.

Isso não lhe incomoda. Nem nunca irá.
Estou certa.
Meu desprezo a você é desprezo meu a mim.

Desaprendi a não pensar em você. A todo instante.
Desprezar-lhe é não me ser.
Desprezar-lhe é me anular, inexistir.

Só sou em você.